Agência da ONU que levou Nobel ajudou 88 países

O Prêmio Nobel da Paz de 2020 foi para o Programa Mundial de Alimentos (PMA) da Organização das Nações Unidas por seus esforços no combate à fome e pela necessidade de “solidariedade internacional e cooperação multilateral”. O anúncio, feito às 11h em Estocolmo, na Suécia (6h, horário de Brasília), corresponde à 101ª premiação da categoria, concedida anualmente pelo Comitê Norueguês do Nobel.

“Até o dia que tivermos uma vacina, a comida é a melhor vacina contra o caos”, disse Berit Reiss-Andersen, presidente do comitê. “O Prêmio Nobel da Paz de 2020 vai para o Programa Mundial de Alimentos por seus esforços de combate à fome, por sua contribuição para melhorar as condições para a paz em áreas atingidas por conflitos e por agir como força-motriz dos esforços para prevenir o uso da fome como de arma de guerra.”

Criado em 1961 e sediado em Roma, o PMA é a principal organização que atua no combate à fome e o 12º braço da ONU a ser premiado com o Nobel. Apenas em 2019, a agência forneceu assistência a 97 milhões de pessoas em 88 países. Seu diretor, David Beasley, classificou o prêmio como um “reconhecimento incrível”. Pelo Twitter, a organização manifestou os seus “mais profundos agradecimentos”, afirmando que a vitória é “um lembrete poderoso para o mundo de que a paz e a fome zero caminham lado a lado”.

“O Nobel põe luz a um problema que o mundo ainda vive, que é a fome, a pobreza, as pessoas que estão desassistidas e em condição de vulnerabilidade. Foram elas quem receberam esse prêmio”, disse ao Jornal O Globo Daniel Balaban, diretor do Centro de Excelência Contra a Fome do PMA no Brasil.

Criado em 2011, o centro atua em parceria com o governo brasileiro no desenvolvimento de políticas alimentares em países da África, da Ásia e da América Latina.

Piora da fome
Após cair por mais de uma década, a fome no planeta cresceu nos últimos anos: em 2019, o número de pessoas que vivem em insegurança alimentar grave chegou a 135 milhões, aumento causado majoritariamente por guerras e conflitos. A estimativa é que, em 2020, em meio à pandemia de Covid-19 e ao acirramento dos conflitos armados em países como Burkina Faso, Iêmen e República Democrática do Congo, o número possa chegar a 265 milhões.

Em seu anúncio, Reiss-Andersen destacou que guerras e fome agem em um círculo vicioso, se agravando mutuamente: para que uma seja erradicada, a outra também precisa ser. Hoje, dois terços do trabalho do PMA são centralizados em países afetados por conflitos armados, onde a população tem três vezes mais chances de viver em subnutrição.

Se a África é a região que enfrenta o cenário mais grave, no entanto, é na América Latina e no Caribe que a insegurança alimentar cresce com mais intensidade. Após anos de sucesso, o Brasil sofre retrocessos significativos neste âmbito: em 2018, 10 milhões de pessoas, ou 37% das famílias brasileiras, passavam fome, segundo o IBGE. Em 2004, eram 35% e em 2013, 23%.

“O prêmio Nobel deve significar um chamado para o Brasil, um dos maiores produtores de alimentos do mundo, de que a fome é inaceitável. Deve ser prioridade dos governos nos três níves e da indústria alimentícia, desde o agronegócio até os supermercados, que a população tenha acesso à comida”, afirmou Katia Maia, diretora executiva da ONG Oxfam Brasil. “O direito de vida é negado às pessoas que têm fome.”

Multilateralismo
Segundo Katia, o declínio brasileiro é uma consequência do desmonte de políticas públicas implementadas no início do século, que ajudaram a tirar o país do Mapa da Fome, como o Bolsa Família, o aumento real do salário mínimo e o Fome Zero. O idealizador deste último programa, José Graziano da Silva, que dirigiu a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura por dois mandatos, disse em seu Twitter que o Nobel que “põe novamente a fome no centro da agenda internacional”.

O prêmio pode ainda ser visto como um balde d’água fria ao discurso “antiglobalista” adotado por líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro, que acusam instituições internacionais de minar a soberania dos países e tentar apagar as tradições nacionais. Para Kai Lehmann, professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), a escolha do Comitê Norueguês do Nobel é um aceno à cooperação global:

“Nos últimos anos, o comitê tem escolhido ganhadores com bastante simbolismo político”, disse, lembrando que a União Europeia foi premiada em 2012. “Há uma tentativa de fortalecer o multilateralismo diante das crises. Na época foi a crise econômica. Hoje, é o coronavírus.”

Desde que chegou ao poder, Trump retirou os EUA de diversas organizações das Nações Unidas e cortou financiamento para diversas outras — neste ano, em meio à pandemia de Covid-19, deu entrada no processo de saída americana da Organização Mundial da Saúde. Entre 2018 e 2019, no entanto, o país aumentou em US$ 910 milhões sua contribuição para o PMA, doando um total de US$ 3,4 bilhões, 42% do orçamento recorde de US$ 8 bilhões.

“O PMA só existe por causa do multilateralismo. Sem os recursos públicos dos países mais desenvolvidos, a agência não teria condições de ajudar os mais vulneráveis”, disse Balaban. “Se nós estamos conseguindo desenvolver uma vacina para o coronavírus em tempo recorde, se conseguimos criar drones, pôr satélites em órbita e mandar foguetes para marte, por que não conseguiríamos acabar com a fome no planeta?”

Ganhadores anteriores
No ano passado, surpreendendo o mundo, o vencedor foi o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, por seus esforços em acabar com o conflito com a vizinha Eritreia. Abiy foi o segundo africano consecutivo a ser premiado, seguindo o médico congolês Denis Mukwege, que no ano anterior havia sido escolhido por seus esforços no combate ao estupro e a violência contra as mulheres.

Algumas das grandes surpresas incluem a paquistanesa Malala Yousafzai, que recebeu o prêmio em 2014, aos 17 anos, “pela luta contra a opressão das crianças e dos jovens e pelo direito de todas as crianças à educação”. Ela se tornou a pessoa mais jovem a receber o Nobel. Outra grande surpresa, muito contestada à época, foi a escolha, em 2009, do então presidente americano Barack Obama, agraciado em seu primeiro ano de governo por seus “esforços extraordinários para fortalecer a diplomacia internacional e a cooperação entre os povos”. Ironicamente, Obama passou os seus dois mandatos em guerra: foi o primeiro a completar oito anos completos de gestão com tropas de seu país em combate ativo.

Os prêmios Nobel são concedidos desde 1901 a homens, mulheres e organizações que trabalharam pelo progresso da Humanidade, de acordo com o desejo de seu criador, o inventor sueco Alfred Nobel. O prêmio é entregue pelo Comitê Norueguês do Nobel, composto por cinco membros escolhidos pelo Parlamento norueguês. O vencedor recebe, além de uma medalha de ouro, 9 milhões de coroas suecas, o equivalente a US$ 910 mil (R$ 5 milhões). Desde a última segunda-feira, o Nobel já divulgou os laureados das categorias de Medicina, Física,Química e Literatura.

Por Redação/G1/O Globo

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